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 Angioedema Hereditário

Por: Raul Emrich Melo

A quantidade de pessoas com herança alérgica é muito grande. Segundo estudos, um quarto da população de alguns países. Além disso, há outros, como a Inglaterra, em que se suspeita que a porcentagem ultrapasse os 40%. Considerando que boa parte desse contingente apresenta, vez por outra, inchaço, ou urticária (manchas vermelhas que coçam), fica claro como é difícil para os médicos pensarem em outros diagnósticos raros que expliquem o inchaço eventual em uma pessoa que chegue ao pronto-socorro.

Crises com lábios enormes e olhos “de sapo” tornam o paciente irreconhecível e são apenas parte da intrigante e sofrida história dos portadores do Angioedema Hereditário (angio significa vaso e edema, inchaço). Intrigante pois os remédios que funcionam muito bem para inchaços de causa alérgica, como os antialérgicos de última geração  (ou anti-histamínicos não sedantes) e as cortisonas (ou corticosteroides) não resultam em melhora no inchaço da doença em questão.

Também é surpreendente conhecer a complexidade das substâncias envolvidas no processo. São interações entre proteínas que recebem códigos como C1, C4, C1-INH, fator XI, fator XII e nomes de substâncias como calicreína e bradicinina. Poucos médicos terão paciência para ler um artigo científico que contenha detalhes sobre a interação dessas substâncias na via do complemento, do contato, ou alternativa. Essas vias são sequências de proteínas que vão se transformando, como dominós que caem uns sobre os outros e, no final, produzem uma reação de defesa ao ataque de um germe estranho.

De fato, um dos importantes meios de nos defendermos de bactérias e outros microorganismos intrusos é a produção de proteínas (uma delas é chamada de Complemento – cuja sigla é o C) que se “grudam” e atrapalham o funcionamento de células invasoras, permitem que os anticorpos sejam mais eficientes, matando-as, ou contribuindo para a chegada de outras células imunológicas, ao abrir as junções dos vasos que chegam aos tecidos. Nesse processo, chamado de inflamação, o líquido do sangue (plasma) extravasa. Isso pode ser um grande problema, se não houver um freio adequado.

Voltando à metáfora dos dominós levantados: se não há, no meio deles, peças deitadas (os inibidores) que impeçam a reação em cadeia após um leve esbarrão acidental, o paciente passa a viver com uma insegurança constante, fato que também contribui para a piora de sua qualidade de vida.

A partícula inibidora, chave para entender o Angioedema Hereditário, é o C1-INH (ou seja, o inibidor do C1 – “inhibitor”, em inglês). Se ele existir em pequena quantidade (falha quantitativa), ou se a função de inibição for insuficiente (falha qualitativa), a cascata corre solta. Aliás, “cascata” é um termo usado pelos médicos para a descrição da fisiologia dessas pequenas partículas do sistema de defesa. Hoje sabemos que o C1-INH atua em diversas outras frentes, ou cascatas, controlando a coagulação, a permeabilidade dos vasos e a produção de partículas contra agressores.

Se não houver o inibidor (o “freio” de que falamos), o inchaço se segue a estímulos como trauma (cirurgia, extração dentária, ou um soco na aula de caratê), alguns remédios chamados de inibidores da ECA (médicos conhecem bem essa classe de remédios) e também infecções. Interessante saber que o estresse foi um dos primeiros desencadeantes conhecidos, tanto que inicialmente o edema era chamado de angio –“neurótico”. De qualquer forma, a preocupação maior não está em tentar evitar a feiúra de um “beiço” exagerado, mas a asfixia grave pelo inchaço na região respiratória (na altura da garganta, ou glote), quadro fatal em até 30% das ocorrências.

Com tamanha morbidade (ato de ficar doente) e mortalidade, grandes esforços têm sido despendidos para uma solução satisfatória. O tratamento contínuo, de prevenção das crises ainda é bastante ancorado no uso de androgênios, hormônios semelhantes aos encontrados nos homens e, por isso mesmo, responsáveis por muitos dos efeitos indesejáveis observados nas mulheres. A virilização (indução de características masculinas, como engrossar as voz, pêlos em abundância e aumento da massa muscular) resulta em 25% de abandono no tratamento. Não bastassem esses efeitos, ainda podem ocorrer ganho de peso, irregularidades menstruais, depressão, alteração na função do fígado, cefaléia (dor de cabeça) e alteração nas taxas de colesterol.

Se a falta do inibidor C1-INH é a base do Angioedema Hereditário, seria natural pensar em um remédio que seja o concentrado dessa substância. Na verdade, ele já existe, mas tem que ser aplicado por via intravenosa (“na veia”) duas vezes por semana. Alguns estudos já advogam até a autoaplicação, visando uma vida o mais próxima do normal.

O raciocínio seguinte seria bloquear a substância final da cascata de proteínas – a bradicinina, o último “dominó” que tombaria e produziria a reação nas células e tecidos. Além do plasma fresco congelado, uma solução antiga, nem sempre eficiente e passível de contaminação (pois usa o soro de outra pessoa), o efeito da bradicinina pode ser bloqueado por um remédio (bloqueador do receptor, isto é, do local onde atua a substância), que já existe no Brasil. Como ele tem efeito curto, é utilizado por via subcutânea apenas na crise.

Para muitos pacientes é possível perceber que a crise está para acontecer, quando aparecem, por volta de 24 horas antes, sinais indiretos como fadiga, erupção cutânea e dor muscular. Recente artigo de um grupo de pesquisa americano observou que metade dos 44 pacientes conseguiu prever os ataques de inchaço em 75% das vezes. Utilizar um bloqueador de crise nesta fase do processo é bastante eficiente. Também pode ser recomendado o uso do remédio em situações de alta probabilidade de crise, como cirurgias e procedimentos odontológicos.

Outro sintoma presente na crise é a intensa dor abdominal, resultado dos espasmos da musculatura que envolve o intestino, estimulada pela bradicinina. Muitos pacientes chegam a ser operados inutilmente por não terem ainda o diagnóstico da doença.

Anti-histamínicos (conhecidos como “antialérgicos”) atuam na histamina, primeira substância liberada em uma reação alérgica. Por essa razão, a crise de Angioedema Hereditário não é controlada pelos antialérgicos comuns. A histamina também produz, na maioria dos casos, os “vergões” avermelhados que coçam bastante (a urticária). Como diferença marcante, portanto, observamos que não há urticária no Angioedema Hereditário, uma doença genética geralmente de início na infância que, curiosamente, nem sempre vem de família, pois podem acontecer mutações na formação de um feto que originem novas variações. Outra peculiaridade é a ocorrência de angioedemas semelhantes ao hereditário, na vida adulta, como resultado de outras afecções, como o câncer. Nesse caso, o angioedema é chamado de adquirido, significando que o paciente não nasceu com ele.

Com objetivo de ampliar o leque de informações sobre o tema, recentemente foi criada, por iniciativa de pacientes, a Associação Brasileira de Portadores de Angioedema Hereditário, uma entidade que cadastra, promove eventos e traz discussões necessárias não só para quem está doente, mas também à classe médica.

Doença renal, cardíaca, ou alérgica são diagnósticos que os portadores do Angioedema Hereditário costumam ouvir por 10 a 20 anos antes que um médico peça o exame de dosagem de (inibidor de) C1 esterase (ou C1-INH, ou inibidor do C1) e dê a má e a boa notícias: primeiramente, que não há cura; por outro lado, que é possível ter uma vida praticamente normal com os tratamentos tradicionais adicionados às novidades que estão surgindo no mercado, prevenindo assim cirurgias desnecessárias, crises extremamente desgastantes e até a morte, um desfecho que cada vez mais poderá ser evitado.

 

Dr. Raul Emrich Melo
Postado originalmente no site tratandoalergia.com.br
 

 

 
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