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 Cortisona: Para o Bem ou para o Mal?

Por: Raul Emrich Melo

A simples menção da palavra “cortisona” deixa muita gente arrepiada, como se esta droga fosse a essência da maldade. Por que será?

Quando o corticóide (ou corticosteróide, termos técnicos para a “cortisona”) foi descoberto, na década de 30, como droga possível de ser utilizada em pacientes com artrite reumatóide (o “reumatismo” que leva à deformação das “juntas” – ou articulações), acreditou-se que a medicina tinha chegado ao ápice, com o poder de proporcionar a cura a aflições muito intensas e prolongadas. Então, doses e mais doses, cada vez mais altas, eram utilizadas. Ao longo do tempo, os efeitos colaterais começaram a aparecer: catarata, osteoporose, hipertensão arterial, diabetes e ganho de peso, entre outros. Paralelamente, outras doenças também mostravam melhora e o uso da cortisona se espalhou pelas diversas especialidades. Junto com as alegrias – às vezes apenas temporárias – apareciam também as frustrações.

Para entender esse processo complicado, precisamos lembrar que nós produzimos nossa própria cortisona diariamente, em doses que variam conforme o horário do dia. Pela manhã, doses maiores são lançadas no sangue e nos mobilizam para o dia que começa. Tecidos e órgãos de várias partes do corpo ficam então “sabendo” que o ritmo é de atividade, ação. Nas situações de stress, quando precisamos de muita energia para resolver problemas, física ou mentalmente, nossa cortisona estará lá, em doses maiores. Tanto que na doença do stress, em que estes períodos são excessivamente prolongados, podemos ter até dificuldade de perder peso.

À noite, quando a cortisona cai e nos preparamos para dormir, muitos dos sintomas aparecem, ou são mais intensos (tosse, febre, alergias), pois a cortisona também faz um papel, na balança imunológica, de colocar “panos quentes” em processos de inflamação e a inflamação é uma reação normal a invasões, lesões ou auto-agressões.

Como a alergia não deixa de ser uma auto-agressão, o médico poderá lançar mão do corticóide na forma de comprimidos, xarope, injeção, pomada, ou spray (aerossol), para domar uma doença que diminui a qualidade de vida do paciente. Mas não podemos colocar todas estas formas de cortisona na mesma prateleira.

Quando a cortisona é injetável, por exemplo, significa que estamos falando de doses altas. Mesmo assim, podem ser de tempo curto e ação (quando é injetada na veia) ou, como em algumas versões, de tempo prolongado. Neste caso, uma única aplicação no músculo resulta em doses elevadas por 20 a 30 dias. São as famosas injeções que melhoram os sintomas por 1 mês e depois deixam o paciente com a vontade de repetí-las. Situações em que apenas uma dose do remédio já é suficiente para produzir efeitos colaterais em algumas pessoas.

A cortisona local, no entanto, quando é aplicada no nariz e no pulmão, apresenta doses tão ínfimas que, em relação aos problemas de longo prazo, alguns estudos não têm visto efeitos colaterais mesmo após vários anos de uso. Em algumas crianças, levantou-se a dúvida sobre uma possível alteração final no crescimento; mas até isto foi descartado.

Portanto, torna-se evidente que há muito exagero e mal-entendido na preocupação em relação aos corticosteróides, principalmente se levando em conta o surgimento recente de versões ainda mais modernas e sofisticadas. Em relação ao spray para pulmões, por exemplo, já temos até uma versão de cortisona que só tem efeito quando chega à parede brônquica.

O surgimento dos corticosteróides locais (sprays) representou a grande virada no tratamento da rinite e da asma (ou “bronquite”) no século XX, assim como a percepção da doença como resultado de um processo inflamatório de auto-agressão que, com altos e baixos, se arrasta às vezes por uma vida inteira, apesar de uma parcela razoável dos pacientes com asma deixar de apresentar sintomas (ou apresentá-los raramente) na vida adulta. No final da década de 80 e início dos anos 90, quando orientávamos os residentes e estagiários no Ambulatório de Alergia da UNIFESP a prescreverem o único corticóide que tínhamos à disposição, havia a incômoda sensação de estarmos lidando com uma droga ainda não muito estudada. Afinal de contas, era uma “cortisona”. Anos (e muitas discussões) após, ficamos mais tranqüilos ao observar a boa e segura evolução, em pacientes de variadas idades, com o uso dos corticosteróides de geração posterior. A observação na prática clínica apenas reforça o conceito de que o corticosteróide local ainda representa o tratamento prolongado mais eficaz para a rinite e para a asma.

O argumento sobre um possível preço maior da cortisona e do antialérgico de última geração é uma meia-verdade. Freqüentemente, uma alergia mal conduzida tem como conseqüência custos muito mais elevados, tanto pela necessidade de drogas para a crise e doenças correlatas – sinusite, otite – como pelo excesso de medicações equivocadas, resultante de uma medicina sucateada, da cultura do Pronto-Socorro ou simplesmente do receituário defensivo – em consultas de emergência, alguns médicos tendem a medicar mais para não receberem reclamações.

De qualquer forma, a cortisona não é a solução para tudo. O paciente precisa mesmo é ter a nítida impressão de que o médico está sinceramente interessado em seus problemas, por prosaicos que pareçam, procurando uma solução individual, com melhor custo-benefício.

 

Dr. Raul Emrich Melo
Postado originalmente no site tratandoalergia.com.br
 

 

 
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