home > publicações > kadafi    

 Kadafi e a Busca da Felicidade

Por: Raul Emrich Melo

o ditador líbico Muamar KadafiNo início da guerra civil na Líbia, o ditador Muamar Kadafi desafiou seus detratores ao convocar o povo a ser feliz, a dançar e a cantar, mesmo em um momento crítico de convulsão social. Independentemente da bravata populista, pergunto se a troca de governo trará mais felicidade, ou se a mudança política (e cultural) vai determinar uma melhora da percepção de bem-estar da população. Afinal, esse é considerado o objetivo máximo individual nas sociedades industrializadas: encontrar a felicidade.

Segundo os biólogos evolucionistas, o desejo de se sentir bem, de procurar ativamente o bem-estar, está em nossos próprios genes. Estar bem favoreceria a continuidade da vida e da prole. Por outro lado, a angústia de não entender as forças da natureza e a perplexidade frente à morte e à doença podem bloquear esse processo. Assim surgiu a primeira das profissões, a do médico-sacerdote. Até hoje, em algumas sociedades, essas funções se fundem. Anos atrás, após atender uma criança em uma aldeia do Xingu, presenciei, no final do dia, o pajé, em seu ritual de xamanismo, prestar seus cuidados ao meu pequeno paciente. A mãe, por via das dúvidas, preferiu não arriscar e solicitou ajuda tanto à ciência do século XX como aos deuses ancestrais.

Ao longo da história humana, as respostas às nossas angústias têm sido supridas pela palavra do xamã, do filósofo, do padre e, atualmente, também do médico. Joseph Campbell, no livro O Herói das Mil Faces, atestou que “...o médico é o moderno mestre do reino do mito, o guardião da sabedoria a respeito de todos os caminhos secretos e fórmulas poderosas. Seu papel equivale precisamente ao do Velho Sábio...” Pena que nem sempre o médico de nosso cotidiano justifique tamanha reverência...

O fato é que a procura da felicidade (mesmo que ela estivesse no céu, como na Idade Média) sempre esteve em pauta. Em relação ao tema, a Constituição Americana já fazia referência, tornando-se oficialmente o primeiro relato institucional com citação específica: “Todos os homens foram ...dotados de direitos inalienáveis, entre eles ...a busca da felicidade”. Benjamin Franklin, um dos heróis da independência, observou agudamente que  “...a Constituição garante apenas o direito da busca da felicidade; quem deve conquistá-la é você mesmo.”

No fim do século XX, a discussão tinha passado para o terreno dos economistas e cientistas sociais. Em 1984, Ed Diener cunhou o termo Bem-Estar Subjetivo, por falta de um consenso de como realmente se definiria a palavra felicidade. A partir de então, amplas pesquisas, como as realizadas pelo World Values Survey, estudaram os vários índices relacionados ao viver bem.

Em uma das interessantes análises postadas no site worldvaluessurvey.org há o cruzamento de valores religiosos/seculares de um lado, versus sobrevivência/expressão pessoal de outro. Em um extremo, Egito, Argélia, Marrocos, por exemplo (não houve pesquisa na Líbia), apresentam fortes valores religiosos/tradicionais (oposição ao aborto, pouca liberdade da mulher, etc) e luta contínua por necessidades básicas. Na outra ponta, estão Suécia, Dinamarca e Noruega, países laicos com elevados níveis de tolerância, cidadania e qualidade de vida. E o Brasil, nesta avaliacão? Bem, está numa posição intermediária.

Esse processo culminou simbolicamente com a decisão do governo do Butão, em 2008, de criar uma medida para a Felicidade Interna Bruta. Ou seja, mais importante que os indicadores exclusivamente econômicos, este parâmetro seria o novo norte das ações governamentais. Como era de se esperar, as críticas foram variadas à inciativa, mas outros países, como a Inglaterra e a França, se mostraram firmes no projeto de instituir medidas claras para medir a satisfação do povo.

O intrigante é observar que nem sempre quem é mais rico é mais feliz. O PIB americano quadruplicou desde a Segunda Guerra Mundial. Nem por isso as pessoas se sentiram melhor, mantendo-se “72% felizes” (Ed Diener – Beyond Money). Além disso, a Teoria da Adaptação (ou “Hedonic Treadmill”) defende que o ser humano, após algum tempo de privação e momentos difíceis, se ajusta a um novo patamar. Ou seja, em ditadura as pessoas poderiam ser felizes e, entre os ricos, haveria um platô de bem-estar, já que novas expectativas e exigências aparecem para quem está feliz.

O ser humano, no entanto, em maior ou menor grau, tem em si a inquietude perene de quem sempre quer mais, principalmente se um valor básico, como o da liberdade, está bloqueado. Basta uma fagulha e a combustão acontece, como estamos presenciando agora nos países árabes. Kadafi não percebeu a tempo.

 

 

 
Valid XHTML 1.0 TransitionalValid CSS!