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 Teatro no Âmbito Familiar

o livro história e alergiaTítulo: Manual do Teatro Doméstico
Por Raul Lamba (Raul Emrich Melo)
Editora Via Lettera

veja também em: http://www.estantevirtual.com.br/

 

 

Introdução do Livro

No filme Maccheroni (1985), de Ettore Scola, o ator Mastroianni interpretava no palco uma personagem fanfarrona de uma peça de teatro B que ele mesmo escrevia. Naquele momento pensei que poderia fazer o mesmo: por que não escrever peças histriônicas e chamar os amigos para assistí-las? Poderíamos nos divertir juntos, sem muita responsabilidade.

O projeto consumou-se no final de 1988, época em que eu estava saindo da faculdade de medicina, temeroso de me afastar do coral cênico, da banda de pop e de outras manifestações artísticas que sempre caminharam paralelamente às atividades acadêmicas.

Aproveitei o dia de Natal para chamar alguns amigos e, com mínima produção (um pequeno palco improvidado no próprio dia e luzes de abajur), apresentamos um dramalhão shakesperiano desconexo, em que todos morriam no final. Nascia a fórmula de fazer teatro da Companhia Melo.

Seus integrantes: Fausto Washington (técnico aposentado, pai), Eda Luzia (professora, mãe), Raul Lamba (médico, filho), Carlos Edo (engenheiro civil, filho), Ana Cris (publicitária, filha), Maria Queiroga (empregada doméstica, mãe) e Paulo Roberto (estudante, filho). A partir de 1994, interessei-me em estudar o tema e observei que nossa forma de apresentação teatral tinha aspectos próprios, como o fato de fazer parte de uma festa e ser apresentada por uma família em sua própria casa. Considerando este detalhe importante e diferenciador, resolvi adotar o nome de Teatro Doméstico.

Devem existir eventos deste tipo acontecendo por toda a parte. Talvez, por serem estritamente reservados, não encontrei relatos acadêmicos ou discussões sobre o assunto, o que me animou a escrever este livrio, cujo objetivo é o de facilitar que a experiência da Cia. Melo seja reproduzida em outros lares ou inspire famílias a descobrir seu próprio know-how. Ao fazer Teatro Doméstico, temos a nítida sensação de que participamos de uma gincana escolar, ou seja, de que estamos criando no ato de brincar. Para o pediatra e psicanalista inglês Winnicott, é criando que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida.

Raul Emrich Melo (Raul Lamba)
São Paulo, 15.10.1997

 

Capítulo 1
O que é Teatro Doméstico

Imagine que você está sentado confortavelmente na terceira fila de um teatro; abrem-se as cortinas e entra em cena um ator, vestido de Papai Noel: - Ho, ho, ho… eu sou o Papai Noel; onde está meu saco de presentes? – e sai.

Bem, você considera a cena plasticamente bem feita… mas e daí? Qual é a graça?

Imagine agora que o pai do seu amigo, um simpático aposentado, minutos depois de dar suas boas-vindas para a festa na casa dele, sai sorrindo do lavabo, vestido de Papai Noel, sobe em um placo improvisado e fala “ho, ho, ho, eu sou o Papai Noel…”, faz uma cara constrangida por ter esquecido o resto do que ia dizer e volta  a entrar no lavabo. Você dá umas boas gargalhadas. Qual é a diferença? Você acabou de ver uma cena de Teatro Doméstico.

Teatro Doméstico é uma representação cênica como parte de uma festa restrita a amigos, realizada geralmente por um número familiar. É não-profissional, despretensioso, ingênuo, com características comuns a diversas modalidades de teatro, mas com sua singularidade e magia.
O fato do espaço físico ser uma casa de família faz uma grande diferença, pois veicula mais signos (ou significados). Atores do teatro convencional não moram no teatro onde encenam suas peças! Ao chegar a um teatro-casa, você percebe, acima de tudo, que está participando de uma festa, mesmo que não conheça os atores que entrarão em cena.

Existem algumas peculiaridades que aprroximam o Teatro Doméstico daquele chamado popular: a presença dos atores e a representação são mais importantes do que a peça (que pode, inclusive, ter pouco valor do ponto de vista literário); o palco é montado novamente para cada representação e a platéia faz contínua associação entre o ator e sua vida privada.

Uma característica comum a outras formas de representação, como o Psicodrama e o Teatro Educacional, é o especial estímulo à improvisação, com a participação de todos, independente do fator talento. Além disso, mais uma variável é acrescentada: as relações familiares (ou de amizade) entre os atores trazem maior comicidade à representação, além de remeter o espectador à sua própria família, formada de pessoas comuns, assim como os que estão em cena.

Ao longo da história, a representação circense-teatral sempre aconteceu em luxuosos palácios. No final da Idade Média, o teatro ocidental desenvolveu-se também nas grandes casas das famílias nobres, até o momento em que o profano pôde ser admitido com menores reservas.
No final do século XIX e primeira metade do século XX, dramaturgos e encenadores como Reinhardt e Strindberg postularam a intimidade no teatro (Teatro Íntimo e Teatro de Câmara), em analogia à música de câmara, evoluindo posteriormente para a idéia do Pequeno Teatro, defendida pelo crítico Eric Bentley, que seria um contraponto à profissionalização da Broadway (Nova York) e West-End (Londres). Atualmente existe o Teatro em Domicílio, em que grupos apresentam-se em casas de família, com peças enxutas e cenários simples.

O Teatro Doméstico, tal como ocorre com a Cia. Melo, tangencia diversas formas de expressão teatral, atendendo apenas ao intuitivo, sem qualquer pretensão retórica, intelectual ou comercial.

É interessante notar que a representação teatral realizada dentro da própria casa é comum quando se trata de crianças. Uma rápida pesquisa informal demonstrará que muitos de seus amigos e conhecidos já se apresentaram para vizinhos e familiares, mostrando suas habilidades de violinista, bailarina, recitador de poesias, etc. Alguns talvez tenham até participado amadoristicamente de peças à maneira do teatro convencional.

Melvyn Bragg relata que o envolvimento de Ingmar Bergman com a arte cênica começou em casa, fazendo teatro de bonecos com a mãe e a irmã, apresentando-se para a família.

Durante a infância, geralmente não temos tanto medo do ridículo e do erro. Vamos aproveitar nossa fase adulta, vamos brincar e fazer o que ninguém espera: fingir que somos atores profissionais! O resultado será péssimo, e todos vão adorar…

 

Prefácio

Raul Lamba, o autor deste Manual do Teatro Doméstico, sugere-nos que façamos nosso próprio teatro em casa, em família, num ambiente festivo, tendo como platéia parentes e amigos, resgatando a ação teatral num outro espaço mais íntimo, que não é mais a sala de um edifício público, nem tampouco a rua ou a praça.

O denominado Teatro Doméstico, por Raul Lamba, que dirige, produz e atua, propõe-nos um teatro resultante de um trabalho coletivo, do qual participam desde o filho da auxiliara da casa, até os próprios pais. Os recursos cenográficos são selecionados e organizados sob o princípio da economia do teatro contemporâneo; isto é, criar linguagem cênica a mais clara e essencial possível, com o menor número de objetos. Da indumentária, passando pelos objetos cênicos, à sonoplastia, o autor mostra-nos sua capacidade criativa, num trabalho de verdadeira bricolage, ao re-construir e re-significar resíduos ou elementos antigos, transformando-os com nova significação cênica.

Tendendo para a linha do teatro nonsense, da linguagem do absurdo, em que o tragicômico se faz presente nas peças encenadas na época do Natal, Raul Lamba brinca ou joga de modo lúcido com textos considerados clássicos, como os de Shakespeare, misturando-os com os eventos da época contemporânea, de modo inteligente, fazendo com que, seja a criança, seja o adulto com grau superior de eduacação, cada um, segundo sua ótica e perspectiva, decodificará a mensagem das peças segundo sua visão de mundo, decorrente de suas experiências vividas.

A finalidade, diz-nos Lamba, é a festa, a confraternização, o teatro como encontro, em que há uma catharsis que elege o espaço doméstico para purgar e expurgar, por via do tragicômico, os fantasmas a serem exorcizados. Talvez, por isso mesmo, as peças incluam assassinato, enquanto símbolo desse ritual ou sacrifício de morte-renascimento.

Mas não vá ter o leitor a expectativa de encontrar neste manual receitas pré-fabricadas para fazer teatro definitivo. Há sugestões legítimas que funcionam para o autor e seu grupo, mas que não esgotam nenhum modelo e nem é essa a sua pretensão. São frutos de sua própria prática que, se verificado o resultado efetivo do aumento da platéia a cada ano, evidencia-nos que seu efeito é salutar.

Situado entre o happening e a performance, o Teatro Doméstico procura combinar a espontaneidade e a improvisação do primeiro com a organização da produção e da criação do segundo. Há, em geral, apenas um dia de trabalho prévio de mesa, de organização coletiva; o resto corre por conta do aqui e agora, do presente da encenação, no dia da apresentação. A atuação do ator enquanto indivíduo é fundamental, não se dissolvendo na personagem.

Em suma, Raul Lamba convida-nos, através do Teatro Doméstico, a produzir e criar nossas próprias peças, no espaço em que habitamos, como uma ocasião propícia à confraternização, cujo efeito é terapêutico, embora não seja esse o seu objetivo exclusivo.

Teatro Doméstico, embora não-domesticado, pois o espaço da improvisação é amplo, cumpre o objetivo a que se propõe: animar e reunir pessoas numa festa de confraternização catártica.

No fundo, não está aí uma das efetivações da concepção de um teatro inserido na vida? É o que Raul Lamba parece nos propor.

Vera Lucia Felício
Doutora em Filosofia.
Professora da Universidade de São Paulo.
São Paulo, 30.03.1998

 

 
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