Vinho e Asma

Vinho e Asma

Quando uma jovem paciente relatou seu desespero ao ver-se, minutos após uma taça de vinho, inchada e perdendo o ar, senti-me solidário, não só por seu quadro alérgico, mas também pela possibilidade dela ter um grande prazer negado pelo destino.

Como nossos destinos e desejos caminham ao contrário!  –  disse Shakespeare. E o destino de alguns alérgicos pode ser afastar-se de uma bebida que, como dizem, tem a História em cada garrafa. Isto é verdade desde os tempos de Tutankhamon, o faraó que morreu jovem e se tornou novamente famoso em 1922, quando teve seu tesouro funerário descoberto. Ele foi encontrado ao lado de 26 ânforas devidamente catalogadas, com descrições de suas propriedades gustativas, safra e vinhateiro responsável, dados surpreendentemente semelhantes aos de um Bordeaux do século XX.

É verdade que a cerveja tem uma história interessante, também paralela ao desenvolvimento da civilização, mas para os amantes do vinho, nada se compara à complexidade da relação terreno, microclima e cepas distintas, com um resultado que (muitas vezes) melhora com o envelhecimento.

A videira merece cuidados durante todo o processo de crescimento das uvas. Uma destas medidas é a limpeza criteriosa das folhas, para permitir que uma dose exata de sol concentre o açúcar necessário à fermentação. Em meu primeiro dia de trabalho nas margens do rio Ródano, em meados da década de 1980, quando arranquei com vigor um esquálido galho com minúsculas bolinhas verdes, meu patrão arregalou os olhos: “Que é isso, rapaz? Essas são as uvas! Arranque as folhas!”. Não podia negar, sempre fui urbano.

Não é necessário pôr a mão na massa para desfrutar do prazer de um bom vinho. Quando minha paciente ingeriu o vinho branco, no entanto, tomou contato com o metabissulfito potássico, usado há séculos para controlar, em tanques e barris, o crescimento de bactérias e fungos que fazem parte da fermentação. No início – o primeiro documento específico sobre a sulfitagem data de 1487, na Alemanha – o método consistia na queima, dentro do barril vazio, de madeira mergulhada em enxofre. Aliás, antes da adoção do método, pouco importava a variedade da uva, pois todos os vinhos iriam se transformar rapidamente em vinagre.

Solucionado um problema, outros se criam. Os aditivos alimentares da família dos sulfitos há muito têm sido implicados como os responsáveis pelos sintomas de muitos pacientes. A pergunta é se esta explicação não tem sido superestimada. Um estudo publicado na conceituada revista médica Thorax, em 2001, por exemplo, mostrou que apenas 17% (dos pacientes que relatavam reações) reagiram ao entrar em contato com doses altas de sulfitos no vinho, sugerindo que o fenômeno é complexo e pode envolver vários mecanismos interdependentes.

Afinal, o vinho é formado de centenas de componentes diversos. Um destes é a histamina, causadora de enxaqueca em indivíduos que não a degradam adequadamente. Neste caso, a culpa parece recair no funcionamento inadequado de uma enzima encontrada na mucosa intestinal (quer saber o nome dela? É a diamino-oxidase. Chique, não?) Ela pode ser inibida pelo álcool e por numerosas drogas. Além disso, o vinho pode apresentar níveis de histamina cem vezes superiores ao da cerveja. Lembre-se que histamina é aquela substância liberada em excesso em pessoas alérgicas (por exemplo, quando a pele fica inchada, avermelhada e com coceira, ou seja, na urticária).

Alguns estudos evidenciaram a relação entre altos níveis de histamina e redução da capacidade de sua degradação (ou seja, intolerância) com sintomas de cefaléia e urticária. Como tratamento, uma dieta com baixa histamina, o que excluiria queijos e bebidas alcoólicas.

E então retornamos mais uma vez a uma das questões cruciais: é necessário excluir definitivamente o vinho da dieta de nossa paciente? Por que não achar uma solução receitando um vinho isento de histamina, já produzido em alguns países, ou procurar um vinicultor local que, com sua família, esforça-se em ter um produto aceitável, sem conservantes? Parecem boas soluções.

O problema é que o prazer não está relacionado apenas ao seu poder embriagante, mas também ao paladar. É bem verdade que os primórdios da civilização privilegiaram a gradação alcoólica e, neste caso, o vinho levava nítida vantagem sobre a cerveja, esta reservada aos bárbaros, segundo os gregos antigos. Mas, esnobismo à parte, nossos antepassados da Grécia – pelo menos no que diz respeito à herança cultural – prezavam bastante o aspecto saudável da bebida como comunhão entre as pessoas. O simpósio, aliás, foi criado naquela época (symposium, banquete) e o presidente da mesa teria a função de convidar as pessoas à discussão dos variados temas. Sempre ao lado de uma jarra de vinho, bem entendido.

Já o tamanho da garrafa moderna teria como base a limitação dos artesãos italianos do século XVIII. Como as garrafas eram sopradas uma por vez, a legislação da época considerava potencialmente danoso aos pulmões exceder o volume de 750 ml. Após milênios de armazenamento em ânforas e tonéis, o novo recipiente representou a maior revolução da história do vinho. Segundo outros, esta quantidade remontaria à nossa Grécia antiga e seria a medida exata necessária para uma reunião a dois, com três taças para cada um. Nem de mais, nem de menos.

Também neste momento, o vinho tomava proporções inéditas como instrumento da medicina. Alívio da dor, anestésico para as cirurgias, alegria para os deprimidos e tratamento da asma. Hipócrates, que nasceu na ilha de Cós no 5º. Século a.C., quase sempre incluía um tipo específico de vinho em suas receitas, assim como Arnaldus de Villanova, um professor de medicina que escreveu, em 1311, o primeiro livro sobre vinho de que se tem notícia. Esta estreita relação talvez explique porque, ao longo dos séculos, os médicos têm mostrado especial paixão pela enologia.

Se na Idade Média o principal motivo para saborear uma taça era afastar-se de infecções intestinais, ainda estamos longe de esclarecer até que ponto a bebida deve figurar no receituário moderno. Os benefícios cardiovasculares são bem conhecidos, principalmente associados à dieta mediterrânea. Interessante foram os dados de 1.500 habitantes do estado de Nova York, que mostraram associação entre o consumo de vinho branco e melhora das medidas de função pulmonar. Outros tantos estudos poderão trazer dados controversos, deixando dúvidas se o consumo moderado é causa ou consequência do modo de vida saudável.

No século XVII, a água potável já tinha então eliminado o fundamental motivo para o consumo de vinho na Europa. Contribuiu para este cenário a chegada de novos concorrentes. O destilado, vindo do Oriente Próximo, era o próprio “espírito do vinho” (e até hoje, para os anglo-americanos, a palavra spirit significa bebida alcoólica). Também despontaram o chocolate do Novo Mundo e o aprimoramento da cerveja pelos holandeses, ao incluir na fórmula uma trepadeira européia que passou a conferir um amargor característico e obrigatório: o lúpulo. O vinho perdia o trono, mas não perdia a classe.

Uma grande descoberta que, ao ser amarrada ao gargalo, permitiu a evolução dos vinhos espumantes, foi a rolha de cortiça, extraída da casca de uma árvore encontrada no norte da África e na península Ibérica (mais da metade da produção mundial vem de Portugal). Mas quando o champanhe começou a ser produzido em larga escala, a tecnologia das garrafas ainda estava engatinhando, resultando no estilhaçamento indesejável, devido à alta pressão. Dados da época mostram que os contratos incluíam o risco da perda de garrafas estouradas, que chegava a 90%. O especialista Hugh Johnson, em seu livro de 500 páginas, ricamente ilustrado, conta que entrar em uma adega de champanhe sem proteger o rosto com uma máscara de ferro seria uma prova de insanidade.

Mas isto são outros tempos. Atualmente, estourar champagne significa mandar o cogumelo pelos ares. E o processo de fabricação ganhou grandes concorrentes mundo afora. Um exemplo é o campeão de vendas de anos recentes, feito da uva Prosecco (80% destas uvas italianas são utilizadas para fazer espumante). Neste caso, a segunda fermentação, após a adição de açúcar e leveduras, acontece mais rapidamente e dentro de tonéis. As bolhas são um pouco menos consistentes que no método champanhês (que inclui a virada constante das garrafas); ainda assim, todo cuidado é pouco para não molhar a toalha.

Quando trabalhei em um restaurante italiano, aprendi com o maître – um calabrês ranzinza – a segurar a rolha com um guardanapo de pano e girar lentamente a garrafa até ouvir o suave sussurro do gás para, em seguida, derramar um fio constante da bebida e, assim, evitar o transbordamento. Com o correr da noite, no entanto, meu mestre passava a exibir sinais de crescente alcoolemia. Ao deixar, inadvertidamente, o champanhe estourar, ele obrigava os clientes do mezanino acima a esquivarem-se do projétil.

Durante a Segunda Guerra, muitas histórias colocaram o vinho como protagonista. Na França ocupada, parte do labirinto de túneis que compunham as grandes adegas, por exemplo, eram emparedados para fugir à fúria alemã de consumo. A Chevalier, uma reconhecida firma francesa de tapetes, prestava serviços de limpeza e depois vendia o pó para que os restaurantes frequentados pelo inimigo dessem aparência de envelhecimento a vinhos recentes de má qualidade.

Em episódio famoso na região de Bordeaux, a Resistência entrou em êxtase quando viu que tinha roubado uma carga dirigida a Berlim com vinhos dos melhores produtores da região. A decepção veio logo depois, ao descobrir que a bebida reservada aos alemães era intragável.

Lavoisier, o químico francês que desvendou o funcionamento dos pulmões, considerava o vinho a mais saudável e higiênica das bebidas. De fato, mesmo os trabalhos atuais continuam a vislumbrar benefícios, como a melhora na Bronquite Crônica avançada (quandro de tosse que se repete ao longo dos anos devido ao tabaco e que pode evoluir de forma irreversível para enfisema) e na prevenção de câncer de pulmão. Tudo isto graças aos antioxidantes. Em contrapartida, alcoolistas podem ter uma redução da função pulmonar equivalente a fumar mais de um maço por dia.

O etanol também pode ser um problema, mesmo em baixas doses. Afeta quase metade dos japoneses, devido a peculiaridades no funcionamento das enzimas do fígado. Enzimas são pequenas e elementares substâncias que tornam as reações químicas (por exemplo, a degradação do álcool) mais rápida e com menor dispêndio de energia. Acredita-se que o resultante acúmulo de acetaldeído (um dos responsáveis pela ressaca) poderia estimular a liberação de histamina nas vias aéreas. Não era o caso de nossa paciente, que agora estava feliz por poder tomar um vinho branco artesanal da zona leste de São Paulo (detalhe: vinho produzido sem o consevante sulfito).

Haja controvérsia, pois, para a maioria dos seres humanos, vale a frase em Otelo, o Mouro de Veneza: “Bom vinho é uma boa criatura, se bem usado”.

Dr. Raul Emrich Melo