Existe um tipo de alergia da pele que se desenvolve lentamente (horas ou dias após a substância encostar em algum ponto de nosso corpo). Dermatite de Contato é o nome específico para esse tipo de reação, que não envolve o anticorpo da classe E (IgE), ou seja, não se consegue determinar a sua sensibilidade por exames de sangue, como o RAST (bastante usado, por exemplo, em investigações sobre alergia a ácaros, pêlo de gato ou veneno de formiga). A forma mais comum de dermatite de contato é a alergia ao níquel, um metal bastante usado na fabricação de bijuterias. Estudos apresentam números de casos que variam entre 5 a 13% da população.
O teste de contato (ou patch test) é a principal maneira de confirmar o diagnóstico. Neste teste, substâncias são colocadas nas costas do paciente por intermédio de um adesivo. Dois a quatro dias após os adesivos são retirados e o médico avalia a intensidade das reações. Vermelhidão, inchaço e até feridas podem ocorrer, denotando a sensibilidade a um determinado agente.
Às vezes, processo de sensibilização se desenvolve somente após vários anos de uso. Ao contrário do que muitos pensam, essa forma de alergia não melhora com o tempo, ou seja, o corpo não ‘fica acostumado’ com aquele estímulo, que tende então a causar irritações mais intensas com a repetição do contato. Essa é a explicação para um número maior de casos entre as mulheres, que desde cedo já usam adereços que acabam por causar as queixas de ‘orelha inflamada’, uma resposta ao contato com o níquel, presente na liga de metal. Em alguns, se observa irritação e coceira na região abaixo do umbigo – que fica em contato com a fivela do cinto metálico. São pessoas que têm alguma tendência genética para o desenvolvimento dessa sensibilidade.
As queixas de alergia ao níquel aumentaram muito com o uso cotidiano de vários itens produzidos pela indústria do século XX, mas há bastante tempo o ser humano já conhecia esse metal, mesmo sem saber exatamente do que se tratava.
Quando exploradores de metais na Alemanha da Idade Média não conseguiam extrair de forma adequada o cobre de seus minérios, culpavam as entidades misteriosas das matas. Um deles, o gnomo chamado de Níquel, seria o responsável por roubar o metal nobre e deixar no lugar uma substância de difícil manipulação. No Oriente Médio, bronzes antigos apresentavam 2 a 3% de níquel. Também já era conhecido pelos chineses, séculos antes, que para ele deram outro nome: “cobre branco”.
A principal liga metálica do níquel, no entanto, ocorre com o ferro, casamento perfeito para a produção do aço inoxidável. Eles são, na verdade, primoirmãos, metais primordiais inclusive na essência dos planetas. Estão juntos no coração da Terra (por isso aparecem nas lavas vulcânicas) e em jazidas de minérios. A região sul do Brasil é uma grande produtora de níquel, perdendo para o oeste da Rússia, onde estão as maiores reservas. De forma contundente, mas esporádica, a liga ferro/níquel penetra na nossa atmosfera na forma de meteoritos, vindos de explosões cósmicas acontecidas há bilhões de anos, em outros astros.
Curiosamente, a liga ferro-níquel dos meteoritos tem uma concentração tão elevada de níquel (até 30%, dezenas de vezes maior que as ligas terrestres naturais), que seria suficiente um teste de níquel para denunciar sua origem espacial.
Em nosso planeta, os dois metais também passaram a fazer parte dos seres vivos. Lembremos que os seres humanos usam o ferro – dentro das células vermelhas do sangue – como captador de oxigênio para depois o distribuir aos tecidos e muitas bactérias utilizam o níquel como elemento indispensável à sobrevivência.
No século XIX, se dominou a técnica de trabalhar o níquel, utilizando-o na produção de moedas, por exemplo. Nos Estados Unidos, no começo do século XX, a peça de 5 cents (o “nickel”, ou “nick”) ficou famosa e era o preço necessário para a frequência a um cinema (ou “odeon”). Foi a época da febre dos cinemas que apresentavam curtas-metragens (os “nickelodeons”), verdadeiros “caçaníqueis”.
O níquel começou então a fazer parte de ligas variadas usadas em todo o tipo de produtos metálicos do dia a dia. Clipes, maçanetas, suportes de luminárias, colares e brincos. Também encontramos em acessórios de roupas (zipper, botões), metais em mobílias, objetos niquelados e prateados, lâminas de barbear, ferramentas, utensílios e instrumentos, óleo de corte, alguns alimentos e, eventualmente, em detergentes e tinturas de cabelo. Até a peça de metal de telefone celular já foi descrita em artigo científico como causadora de irritação na face.
Portanto, a infinidade de benesses industriais tem, como trocadilho, esse outro lado da moeda: a presença de uma substância indutora de reações alérgicas, causando a dermatite de contato.
Note-se que o termo dermatite, sozinho, não significa muita coisa. Refere-se de forma abrangente a uma irritação de pele. Quando dizemos que a dermatite é de contato, o médico já entende do que se trata: uma irritação que não tem cura, para a qual não existe vacina alérgica (ou imunoterapia), pois essa afecção de pele não está relacionada ao anticorpo IgE.
O tratamento inicial das lesões envolve principalmente os cremes e pomadas à base de cortisona (ou corticoide). Antialérgicos (os anti-histamínicos) por via oral podem trazer algum alívio da coceira, mas o item fundamental é o afastamento do material que produz a dermatite. O caixa do supermercado usará luvas, ou tentará evitar o contato com as moedas, por exemplo, e o botão da calça será revestido com uma peça de algodão para evitar o contato direto com a pele; os brincos serão substituídos por aço cirúrgico, titânio, ou então por peças com banho duplo de ouro com mais quilates. Para a surpresa de muita gente, uma peça de ouro pode produzir esse tipo de reação. A explicação é que se constitui de uma liga metálica (o ouro puro seria muito maleável para produzir uma joia).
O trabalho (ou eventualmente outra ocupação cotidiana) é um dos fatores implicados na evolução desse tipo de dermatite. Em artigo recente, publicado nos Anais Brasileiros de Dermatologia, demonstrou-se que 11% das irritações de pele (isto é, das dermatites) foram classificadas com sendo de Dermatite de Contato Ocupacional. Dentre esses pacientes, 37,5% tinham antecedentes de alergia (ou atopia), mostrando que existe uma maior chance dos alérgicos desenvolverem a doença. Além disso, os dados do estudo evidenciaram que condições de trabalho com alta umidade, ou ambientes “molhados”, aumentavam a ocorrência do problema, que em 70% das vezes se localizava nas mãos.
Em 1994, a Comunidade Europeia criou diretrizes para o uso do níquel pela indústria, como a limitação da sua porcentagem na liga metálica e a avaliação da quantidade do metal que é liberado na pele. Desde então, tem sido relatada a diminuição dos casos. Alguns diriam que este é o caminho da modernidade: achar soluções para os problemas que ela mesmo cria.
Dr. Raul Emrich Melo
Postado originalmente no site tratandoalergia.com.br