Quando os espanhois chegaram à América Central no final do século XV, um dos produtos que chamaram a atenção foi a bola de borracha. Também já existiam, na civilização dos índios daquela parte da América (os ameríndios), garrafas e sapatos feitos desse material. Mas não era a borracha como conhecemos hoje. Até o século XIX, quando Charles Goodyear inventou o processo de estabilização (ou vulcanização), o produto se tornava frágil e quebradiço com o frio e também perdia suas características elásticas com o passar do tempo.
A seringueira, uma árvore originária da América e que se adapta bem ao clima tropical, não recebeu o nome de “hevea brasiliensis” à toa. A imensidão da mata amazônica abrigava a maior quantidade dessa espécie e permitiu o “boom” da borracha no início do século XIX, até que mudas fossem transportadas para a Ásia, ali se tornando um pólo concorrente e quebrando nosso monopólio milionário.
O látex, uma variante elástica do produto natural da seringueira, é empregado na composição de artigos de borracha. Seu uso é bastante difundido em medicina, pois é utilizado para fazer as luvas cirúrgicas e boa parte dos catéteres e sondas de que os pacientes precisam. Às vezes, essa necessidade é bastante prolongada. Pacientes que têm problemas sérios para controlar a micção podem necessitar de uso contínuo de uma sonda urinária, por exemplo. Do outro lado, muitos profissionais da saúde têm contato frequente com luvas, uma barreira que evita a contaminação do campo cirúrgico, ou então protege o próprio profissional.
Tudo se complica quando esses grupos de pessoas, pacientes ou profissionais, desenvolvem sensibilidade a produtos do látex. Vermelhidão, coceira e inchaço podem ocorrer nas mãos do cirurgião, quando ele se paramenta para mais um procedimento. Falta de ar pode acontecer quando uma fisioterapeuta inala o pó que sai de dentro das luvas. Aliás, o pó (que facilita o ato de vestir a luva) aumenta o contato com as proteínas causadoras de alergia. Reações sérias e difíceis de detectar são relatadas em pessoas que usam uma sonda, ou foram submetidos a uma cirurgia. Afinal, o médico, ao operar, permitiu um contato intenso do látex com os órgãos do paciente.
O aumento de casos registrados deve-se a vários fatores: a intervenção do homem no processo de maturação da árvore provavelmente alterou as características proteicas da seiva; a preferência pela luva descartável aumentou a demanda por uma luva sempre nova, com maior número de partículas se soltando do produto industrializado, ao contrário das reutilizadas; maior quantidade de pacientes tratados cirurgicamente, ou com sondas e, por fim, maior uso pelos profissionais de saúde como forma de proteção de doenças transmissíveis, principalmente depois do advento da AIDS.
A partir dos anos 80, foi descoberto que a alergia ao látex natural da borracha era resultado da produção exagerada do anticorpo da classe E (ou imunoglobulina E, a IgE). Isto caracteriza as reações chamadas tecnicamente de atópicas. Atopia é a reação alérgica em que a IgE é produzida em grande quantidade, inunda a pele/mucosas e produz liberação de substâncias químicas lesivas ao nosso organismo (a primeira delas é a histamina) em questão de minutos ou, no máximo, poucas horas. As reações rápidas tendem a ser potencialmente perigosas.
Para dar um exemplo: uma enfermeira de 28 anos de idade, com quase 10 de profissão, me relatou, em consulta, que teve uma reação grave no final de uma festa de aniversário, pois, ao que tudo indica, respirou uma grande quantidade de partículas de látex resultante de balões estourados. O contato indesejado induziu a um quadro de falta de ar intensa devido ao inchaço da região respiratória alta (faringe – ou garganta – e glote, que é o local de entrada do ar para os pulmões) associado a uma crise de asma (“bronquite”). A procura imediata a um Pronto Socorro evitou uma história trágica.
A prevenção consiste basicamente em evitar o contato, preferindo-se produtos látex-free, encontrados em casas especializadas para alérgicos. Isto vale também para os preservativos, possíveis causadores de reações inedejadas. É certo que a maioria das pessoas que desenvolvem sensibilidade ao látex são alérgicas; mas nem sempre. A capacidade de produzir a IgE está presente em todos os seres humanos. O detalhe é que os atópicos (ou alérgicos) produzem quantidades exageradas de IgE com maior facilidade. Parece que lesões anteriores também aceleram o processo de sensibilização. Um estudo finlandês do final da década de 80 já mostrava que pessoas que tinham eczema nas mãos (lesões prolongadas que descamam e, às vezes, ficam avermelhadas, eventualmente “minando” um líquido claro) apresentavam maior probabilidade de desenvolver reação ao látex, mesmo se não fossem alérgicas.
Para complicar um pouco, devemos lembrar que certas frutas têm proteínas muito parecidas com as do látex. Neste caso, podem ocorrer as chamadas “reações cruzadas”, ou seja, o indivíduo que já teve problemas com o látex pode ter um quadro alérgico após ingerir banana, abacate, castanhas ou kiwi. Por volta de metade dos pacientes com alergia ao látex poderão experimentar esse tipo de reação cruzada.
Em estudo recente, publicado na Revista Brasileira de Alergia, 29 pacientes com possível reação ao látex foram avaliados, em sua maior parte mulheres. Metade era composta de profissionais da saúde, uma paciente trabalhava com limpeza e 9 tinham passado por mais de quatro cirurgias. Além disso, quase todos tinham a reação cruzada descrita (também chamada de Síndrome Látex-Frutas). Neste caso, os exames foram positivos principalmente para kiwi, mandioca, abacate, maracujá e abacaxi. Alguns pacientes também tiveram positividade para pera, mamão, uva, manga, pêssego e melão.
A medicação de escolha para quadros não graves será o anti-histamínico (ou “antialérgico”), de preferência de última geração, prescrito até a avaliação médica especializada. Talvez essa medicação seja até indicada para situações de risco, apesar de que nem sempre esta conduta possa evitar as consequências de um contato alérgico. Quadros graves serão tratados com adrenalina (aplicação no setor de emergência) e, posteriormente, corticóides (ou “cortisonas”). Ainda não dispomos de vacina alérgica segura para o tratamento da alergia ao látex. Por ora, a melhor prevenção ainda é, além da informação, a distância segura em relação às situações de risco, com olhos bem atentos e uma certa dose de desconfiança.
Dr. Raul Emrich Melo
Postado originalmente no site tratandoalergia.com.br