Inflamação é uma palavra bastante utilizada em situações de febre, infecções e muitas outras doenças, temporárias ou não, mas, curiosamente, o significado é diferente quando faz parte do vocabulário médico. Ao sermos agredidos, nossas células (aqueles minúsculos tijolos biológicos que estão presentes na construção do nosso corpo) morrem e tecidos são lesados (esmagados ou rasgados). Vasos minúsculos podem se romper, resultando em sangue despejado nos tecidos ao redor (a equimose – mancha roxa que surge após uma leve batida – ou hematoma – quando o volume de sangue é maior e resulta em um abaulamento, ou “calombo”). Se estragos acontecessem com seu casaco, você procuraria uma costureira, por exemplo. O incrível é se dar conta de que o processo de conserto das partes machucadas de nosso organismo, de forma geral, não necessita de ajuda externa.
Nós mesmos – nem nos damos conta disso – temos condições internas próprias de reparar os danos e, na maioria das vezes, o resultado é notável, sem deixar marcas (a cicatriz é uma dessas marcas). Para esse conserto, precisamos da inflamação, que se inicia com a liberação de sinais que são reconhecidos por outras partes do corpo, tanto as células e os vasos próximos, quanto regiões distantes que liberam na circulação substâncias que ajudarão na cura da lesão. Portanto, a inflamação, neste caso, tem efeito positivo. Não vamos confundir este quadro com invasões de seres intrusos, como as bactérias, ou vírus. Neste caso, o nome técnico é infecção. O interessante é que esta entrada de invasores (a infecção) também leva à destruição celular, situação que desencadeia o processo de defesa e reparação (inflamação). Quem consegue compreender a diferença entre esses termos tem uma surpresa: a inflamação é benéfica? E se é benéfica, por que eu tomaria um medicamento que pode bloquear ou diminuir este processo natural e necessário (ou seja, os anti-inflamatórios)?
É verdade, a inflamação pode ser benéfica. Ocorre que, ao sentirmos algum sinal da inflamação como a dor, por exemplo, temos vontade de que esse sintoma cesse imediatamente. Mas a dor não acontece à toa. Ela nos induz a tomarmos mais cuidado com a área lesada. Mexemos menos o braço, ou cancelamos nossa participação no jogo de futebol por conta de um tornozelo dolorido. Faz sentido, não? Será que temos paciência para isso? Ou procuramos o médico e dizemos claramente que queremos a interrupção imediata do sofrimento?
Quando o incômodo está passando do limite aceitável, nada melhor do que tomar um medicamento que alivie o sintoma (o remédio chamado de sintomático). Os anti-inflamatórios, com poucas exceções, agem como sintomáticos em uma série de eventos que tomam parte em nosso corpo.
Outras inflamações acontecem de forma menos evidente. Nossas mucosas podem estar levemente inflamadas (com algum grau de inchaço, vermelhidão, aumento de sensibilidade) e, ao contrário do joelho aumentado, vermelho e quente, não apresenta sinais aparentes. Aliás, o calor presente num processo inflamatório foi a origem da palavra: em latim, inflammatio (tocar fogo), ou então, inflamar, flama, chama – logo, calor.
Em outros casos, a inflamação não é resultante de uma agressão externa, mas de uma auto-lesão. São as doenças em que o sistema imunológico se confunde e despeja substâncias tóxicas de forma desordenada, lesando os tecidos (como na inflamação das mucosas decorrente da alergia). Em outros casos, anticorpos são produzidos e, em lugar de atacarem vírus e outros invasores, destroem partes do organismo, como a camada protetora do joelho, ou vasos sanguíneos (a vasculite) que passam pelo pulmão, por exemplo (neste caso, as auto-agressões são chamadas de reumáticas).
Isso coloca uma outra pergunta: será que a inflamação que ocorre na asma e na rinite é maléfica para o nosso organismo? Resposta: sim. Esse tipo peculiar de inflamação é mais lento, escondido, sutil, diário e, muitas vezes, progressivo. Não vemos os sinais evidentes que aparecem no tornozelo torcido. Apenas nos deparamos com momentos de crise. Aliás, uma das buscas da medicina é conseguir detectar sinais de que a inflamação está mais intensa ou não. Em trabalhos científicos, substâncias são dosadas diretamente dentro dos pulmões, na endoscopia. Também dosam-se vários itens que saem pelo ar que expiramos; um dos mais atuais é o óxido nítrico. Aumento nestes valores indicariam maior sensibilidade brônquica (maior sensibilidade significa mais facilidade de ter uma crise durante um resfriado ou mudança de clima).
Como o processo que ocorre nos brônquios é uma inflamação, será que o calor na mucosa é maior, como em outros processos inflamatórios? Para responder a esta pergunta intrigante, fizemos um estudo na UNIFESP em que alguns pacientes mediam a temperatura do ar expirado antes e após um tratamento de algumas semanas para diminuir a inflamação alérgica brônquica (uma cortisona de última geração por inalação). Recentemente, apresentei os dados deste estudo no Congresso Brasileiro de Alergia, em Porto Alegre. Foi interessante constatar que a temperatura do ar que saía dos pulmões era ligeiramente maior antes do tratamento; ou seja, brônquios com vasos dilatados e uma mucosa submetida à inflamação alérgica se comportava, mesmo que microscopicamente, de forma semelhante a outras inflamações, em termos de alteração de temperatura.
E qual é a peculiaridade da inflamação alérgica? Uma das particularidades diz respeito à natureza do processo inflamatório, que não melhora com os anti-inflamatórios comuns, mas sim com as cortisonas, de preferências aquelas de aplicação local, pois não produzem os efeitos colaterais do uso repetido das cortisonas em altas doses por via oral. Os anti-alérgicos também ajudam no processo, principalmente como coadjuvantes do tratamento.
Outro fato impressionante desse processo de inflamação está relacionado ao fato de poder durar meses, anos, ou toda uma vida. Isso mesmo, décadas de irritação da mucosa do nariz e/ou dos pulmões com consequente diminuição da qualidade de vida.
Conclusão: as medidas de prevenção (como evitar respirar o pó de um cobertor) podem ser necessárias para sempre e, os remédios, por no mínimo alguns meses; às vezes, por anos a fio.
Por último, vale lembrar que os remédios de tratamento, se bem orientados, não causam dependência. Vamos então olhar por outro ângulo: quando sofremos de uma doença alérgica prolongada, podemos depender de remédios, pelo menos naquela fase da vida, para viver bem. E viver bem é o que desejamos, não?